Presidente do Haiti é assassinado: entenda a crise que culminou na morte de Jovenel Moïse

Oposição convocou novos protestos para domingo (8/2), data em que cobram saída do presidente

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Oposição foi às ruas em fevereiro, quando deveria terminar o mandato de Moïse, segundo defendiam

O assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foi precedido por meses de instabilidade política e de segurança pública no país.

O primeiro-ministro interino, Claude Joseph, disse em comunicado que a residência oficial do presidente em Porto Príncipe foi invadida por homens armados não identificados à 1h na hora local (1h do horário de Brasília). A primeira-dama também teria sido ferida no ataque.

Ondas de protestos contra o governo, frequentemente violentos, haviam tomado as ruas do país desde o início do ano pedindo a renúncia do presidente, que se recusou a sair do poder quando deveria, segundo a oposição.

O Haiti fica em uma ilha no Caribe, ao lado da República Dominicana, e tem em sua história marcas de uma profunda instabilidade política, social e econômica.

Com a gestão de Moïse, não foi diferente.

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Jovenel Moïse foi morto durante ataque à sua residência em Porto Príncipe, disse primeiro-ministro, Claude Joseph

Desde que a ditadura de François Duvalier, conhecido como Papa Doc, foi derrubada, há 35 anos, o Haiti tem sofrido sucessivas crises de poder, eleições contestadas e golpes de Estado que o tornaram o país do continente que teve mais governos (não parlamentaristas) em menos tempo desde o final do século 20.

De 1986, a pequena nação teve quase 20 governos, chefiados por militares, presidentes eleitos ou interinos, conselhos de ministros ou governos de transição.

Moïse, de 53 anos, estava no poder desde fevereiro de 2017, depois que seu antecessor, Michel Martelly, deixou o cargo.

Ele foi eleito por cerca de 600 mil votos em um país de 11 milhões de habitantes.

Mas a data do fim de seu mandato era controversa e foco de tensões.

Eleições

Moïse tomou posse um ano depois do esperado, em decorrência de irregularidades e protestos que levaram à repetição das eleições de 2015 no ano seguinte.

Por isso, ele dizia que seu governo só terminaria em 2022.

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Na época das manifestações, governo colocou blindados na rua contra manifestantes e foi criticado por sua resposta violenta

A Constituição haitiana estabelece que a duração do governo é de cinco anos e que a mudança de poder deve ocorrer no dia 7 de fevereiro, dia do aniversário do fim da ditadura.

Se tivesse tomado posse em 2016, sua gestão deveria terminar em 7 de fevereiro de 2021.

Para setores da oposição, advogados, acadêmicos e igrejas, o mandato do presidente deveria ter terminado naquele dia. Sem a transição de poder, ele estaria governando de forma inconstitucional.

Em fevereiro, quando Moïse se recusou a deixar o cargo, eles tomaram as ruas em protesto, mas foram recebidos por militares nas ruas de Porto Príncipe, a capital do país, e outras cidades da nação caribenha. Na época, o governo anunciou a prisão de mais de 20 pessoas, e Moïse disse que havia quem quisesse matá-lo.

A oposição haitiana chegou a anunciar, na época, que nomearia uma “comissão de transição” que escolheria um “presidente interino” entre os membros da Suprema Corte e organizaria eleições em dois anos.

Moïse, por sua vez, anunciou dias depois um referendo para abril a fim de aprovar uma série de reformas na Constituição que, entre outros elementos, permitiria a reeleição presidencial por dois mandatos consecutivos, algo proibido desde o fim da ditadura de Duvalier, em 1986.

O referendo foi postergado duas vezes, e estava marcado para setembro, mesmo mês em que as eleições também estão previstas.

Conflitos

Enquanto isso, Moïse era alvo de acusações de corrupção e questionado pela maneira como reprimiu os protestos contra si. Também pesava contra o presidente eleito o aumento nas taxas de crime, conflitos de gangues e sequestros.

Mas talvez o maior foco de tensão era a forma como ele governava o país.

Em janeiro de 2020, Moïse dissolveu o Parlamento e comandava o Haiti por decreto desde então.

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Haiti viveu semanas de protestos intensos contra o presidente Jovenel Moïse, e vive uma crise de covid-19, um dos poucos países do mundo que ainda não aplicaram vacinas

“Não há Parlamento, não há primeiro-ministro, então nos encontramos em uma situação em que Moïse é a única e exclusiva potência do país no momento”, disse o professor Robert Fatton, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, na época dos protestos em fevereiro. Fatton é autor do livro Haiti’s Predatory Republic: The Unending Transition to Democracy (2002) (“A República Predatória do Haiti: a transição sem fim para a democracia”, em tradução livre para o português).

“Na prática, no Haiti, todas as eleições, sem exceção, desde o fim do regime de Duvalier, criaram graves crises sociais, de modo que, na medida em que as disputas são resolvidas, se realizam segundos turnos ou se repetem as eleições, a data que a Constituição estabelece já passou”, afirmou.

No entanto, disse ele, isso não tinha levado os governos a irem “em busca do tempo perdido”, como Moïse tentava fazer.

Essa crise estava inserida dentro de um contexto de pobreza, desigualdade e ingerência de potências estrangeiras vividas pelo país ao longo de sua história.

Além disso, o país sofria com problemas gerados pela pandemia de covid-19. O país registrava um número relativamente baixo de casos e mortes, mas não havia testagem em massa, o que pode indicar subnotificação. Até que em maio deste ano, os casos estouraram.

A reação tardou. O país é um dos poucos no mundo que ainda não aplicaram nenhuma vacina contra a covid-19.

Temendo implicações da crise decorrente do assassinato de Moïse, a República Dominica anunciou o fechamento das fronteiras com o Haiti nesta quarta-feira.

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Fonte: BBC