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‘Partido de Francisco’ escolherá próximo papa? O que se sabe sobre as divisões no conclave

O cardeal Luis Antonio Tagle, o cardeal Pietro Parolin e outros cardeais estão de pé, no dia da trasladação do corpo do Papa Francisco, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, em 23 de abril de 2025

Crédito, REUTERS/Yara Nardi

Legenda da foto, O cardeal Pietro Parolin (segundo na primeira fila, a partir da direita) e o cardeal Luis Antonio Tagle (ao lado de Parolin) estão entre os considerados ‘papáveis’

  • Author, Edison Veiga
  • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

A escolha do sucessor do papa Francisco é uma decisão política, ainda que cumpra ritos religiosos e seja resultado de uma eleição na qual os votantes são um seleto grupo de sacerdotes eminentes que, segundo a doutrina da Igreja Católica, agem por inspiração divina.

Para que o novo pontífice seja anunciado, é preciso que os diferentes grupos de cardeais que formam o chamado conclave, todos com seus interesses diversos, firmem alianças e acordos ao longo do processo.

Quando os 135 cardeais eleitores — aqueles com até 80 anos têm direito a voto — estiverem fechados na Capela Sistina, começarão as sessões de votação e algumas convergências e muitas discordâncias já estarão consolidadas, quer nas reuniões prévias ou em contatos informais nas últimos dias, semanas e até meses.

Na reunião secreta que deve começar entre os dias 6 e 11 de maio, outras posições serão construídas, sobretudo após a apuração de cada rodada de votação. No conclave, o papa só é eleito quando dois terços dos eleitores chegam a um mesmo nome e, enquanto isso não acontece, há momentos em que a palavra está aberta para reflexões e debates entre os cardeais, chamados purpurados, uma referências às suas vestimentas vermelhas.

“Como o papa estava muito enfermo e idoso, é normal que os participantes do conclave já estivessem conversando discretissimamente sobre possíveis sucessores e realizando sondagens, obviamente orais”, aposta o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna, professor na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e na Faculdade São Bento, em entrevista à BBC News Brasil.

“Mas não costumam deixar transparecer esses bastidores do poder eclesiástico“, completa, ressaltando que alguns “fornecem pequenos indícios a amigos e colaboradores mais íntimos”.

“Francisco tinha o desejo de que o futuro papa fosse alinhado a ele. E isso não é um desejo personalista, mas o desejo de uma tendência”, diz à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Ele preparou, no campo da política, as mudanças no colégio de cardeais para que o vento das mudanças continuasse depois da sua morte.”

Entender a sucessão como um jogo de facetas partidárias não é unanimidade.

O sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, discorda da visão do conclave como uma disputa meramente política. “Imaginar [o processo] como uma grande assembleia onde os deputados escolhem o seu presidente […] não é adequado”, frisa ele, à BBC News Brasil.

Na sua visão, os cardeais buscam um consenso para a “proposta eclesial” mais urgente para o mundo atual. E, ao analisar o cenário, ele vê duas linhas: de um lado, “a grande demanda dos setores conservadores”; de outro “a necessidade de uma igreja mais acolhedora, mais capaz de amar os excluídos, os que mais sofrem, os que se sentem injustiçados e marginalizados”.

“Eu não acredito que a gente possa pensar o processo sucessório para o papa como uma questão de linhas ou de partidos, de estarem filiados, não estarem filiados, estarem juntos numa mesma estratégia ou não. Não é por aí que as coisas andam”, justifica ele.

Sucessor natural?

Considerando que, dentre os 135 eleitores atuais, 108 foram indicados pelo próprio papa Francisco, é natural imaginar que o “partido de Francisco” seja o mais forte no conclave. Mas esse partido existe de fato?

Não há consenso entre especialistas e religiosos da hierarquia católica, quer seja porque nem todos os nomeados pelo pontífice morto em 21 de abril eram alinhados a ele, quer seja porque rejeitem que a escolha passa por critérios apenas políticos e circunstanciais.

“O que não sabemos é se os cardeais agora serão fiéis ao seu projeto iniciado há 12 anos. Porque o mundo mudou nesses 12 anos. A Igreja avançou, mas, por outro lado, os reacionários também colocaram suas manguinhas de fora”, diz Moraes.

E há nuances a serem observadas. Embora despontem nomes muito alinhados a ele, como é o caso do italiano Matteo Maria Zuppi ou mesmo do filipino Luis Antonio Tagle, especialistas concordam que Francisco não deixou um único sucessor natural — nos corredores da Santa Sé, Bento 16 (1927-2022), por exemplo, era há muito visto como o sucessor de João Paulo 2º (1920-2005), pela proeminência adquirida durante o pontificado deste.

“Francisco nomeou mais cardeais [dentre os eleitores atuais] do que os papas anteriores. Isso haverá de influir na sucessão”, pontua Zamagna.

“Mas não vejo o papa maquiavelicamente planejando a sucessão como num tabuleiro de xadrez. Ele fez o que achou que devia ser feito, nunca foi de seu feitio querer enquadrar as pessoas, pensando sempre no bem da Igreja e dos povos.”

Professora na Universidade Lusófona, em Portugal, e autora do recém-lançado livro Cristianismo no Feminino, a antropóloga e historiadora Lidice Meyer Pinto Ribeiro ressalta à BBC News Brasil que “era a esperança de Francisco que seu sucessor mantivesse suas reformas e as levasse mais adiante”.

Mas nem só de “partido de Francisco” vive a Igreja atual. Ela nota que a instituição milenar “acha-se dividida em um grupo conservador contrário” às medidas implementadas nos últimos anos.

O teólogo e escritor Frei Betto, frade dominicano, vê com cautela e chama de “imprevisível” o cenário. Para ele, “nem todos os cardeais escolhidos por Francisco são progressistas” e isso ocorreria também porque o papa não adotou um critério de escolha “pensando em sua sucessão”.

“O critério foi dotar as várias regiões do planeta de bispos revestidos das insígnias de cardeais, título meramente honorífico”, afirma ele, à BBC News Brasil.

Betto diz que o papa argentino “também nomeou cardeais conservadores”. E ele teria feito isso pela convicção de que era importante respeitar “o consenso dos bispos locais”. “Jamais nomearia um progressista para um país de episcopado majoritariamente conservador”, explica.

O sociólogo Ribeiro Neto também salienta que o critério de Francisco para a escolha dos cardeais “não parece ter sido a linha pastoral, mas, sim, a ideia de descentralização em relação a uma igreja que foi inicialmente italianocêntrica, e depois eurocêntrica”.

Quando Francisco se tornou papa, eram 28 os cardeais italianos. Hoje são 17. “Foi o país que mais perdeu representantes”, nota ele.

“Ele não nomeou todos os cardeais à sua imagem e semelhança”, concorda Moraes. “Francisco respeitou o trabalho de outras tendências.”

Betto dá como exemplos de conservadores nomeados por Francisco os casos do italiano Marcello Semeraro, do chileno Fernando Natalio Chomali Garib e do peruano Carlos Castillo Mattasoglio.

A antropóloga Pinto Ribeiro elenca também nesse rol o congolês Fridolin Ambongo Besungu. Dentre os nomeados para o cardinalato por Bento 16, também são nomes fortes da oposição, como o americano Raymond Leo Burke e o guineense Robert Sarah. O húngaro Péter Erdő é um raro remanescente dos nomeados por João Paulo 2º.

A ala chamada de conservadora da cúpula da Igreja pode ser pequena em número, mas é bastante ruidosa. Entre os americanos, o cardeal Burke, considerado um dos maiores críticos do papado do argentino, é visto como um dos líderes da oposição. “Todos sabemos que houve e há cardeais que desaprovam a renovação trazida por Francisco”, diz Zamagna.

Francisco sabia disso, é claro. Tanto que, recentemente, despejou Burke de seu apartamento funcional no Vaticano e afastou-o de algumas funções administrativas que ele tinha na Cúria Romana.

Esta foi a principal tática de Francisco para conseguir governar em meio a dissonâncias: colocar amigos em posições-chave. E mexer os pauzinhos para que seus detratores tivessem cada vez menos poder.

Cardeais ao lado do caixão do papa Francisco

Crédito, REUTERS/Yara Nardi

Legenda da foto, A eleição de um novo papa deve começar entre os dias 6 e 11 de maio

O processo eleitoral

Mesmo que os nomes alinhados a Francisco sejam a maioria, analistas entendem que se um opositor despontar logo nas primeiras rodadas de votação e acabar concentrando para si os votos de todos os que tiverem alguma discordância ao modelo de Francisco, este papável tem chances de emplacar com um discurso de mudança. Que, neste caso, significaria uma volta às tradições.

“Francisco enfrentou uma oposição que hoje tem apoio da extrema direita do mundo. Não há dúvidas que muitos católicos estão torcendo para a volta de uma tendência mais conservadora. Então esse conclave será muito interessante: dele sairá como a Igreja Católica vai se posicionar nos próximos anos”, afirma Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Pode haver uma coalização reacionária em torno de algum nome de oposição? Pode”, acrescenta.

O próprio papa Francisco contou, em sua autobiografia Esperança, lançada recentemente, que o processo de escrutínio costuma ter uma primeira rodada “de cortesia”. “Vota-se em um amigo, em uma pessoa respeitada…”, relatou. Nesse sentido, é como se fosse uma homenagem, uma deferência a alguém.

“Então começa um mecanismo bastante conhecido e consolidado: quando há vários candidatos fortes, os indecisos, como era o meu caso, concedem seus votos a quem sabem que não vencerá. São substancialmente votos ‘em depósito’, que aguardam o quadro se desenvolver e se desenrolar com mais clareza”, explicou ele, sobre os bastidores, contando sobre sua experiência em 2013.

No primeiro dia do conclave ocorre apenas uma votação. A partir do segundo, são duas — uma de manhã, outra à tarde. Com base nas apurações, alguns nomes acabam se fortalecendo mais do que outros. Até que há uma imensa maioria depositando a confiança em um dos religiosos — e ele acaba eleito.

Peso brasileiro

Com a estratégia de Francisco de pulverizar as nomeações, é a primeira vez que a Europa não tem a maioria dos votantes, de acordo com dados levantados pelo teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) — há representantes eleitores de 71 países diferentes no colégio cardinalício.

“O número de países representados quadruplicou [desde o início do século 20]”, analisa Altemeyer Júnior.

Esse processo de internacionalização foi iniciado por João 23 e prosseguiu com Paulo 6º e João Paulo 2º, mas foi intensificado no papado de Francisco. Altemeyer observa que o argentino “equilibrou o colégio em relativas quatro partes com número aproximado de eleitores”.

Por essa divisão feita pelo professor, são 31 cardeais de várias partes do mundo atuando na Cúria Romana, 34 espalhados pela Europa, 30 espalhados pelas Américas e 40 no restante do mundo.

A média de idade dos cardeais eleitores é de 70,4 anos. São 18 representantes de 17 países africanos (13,34% do total), 53 eleitores de 18 países europeus (39,26% do total), 23 votantes de 17 países asiáticos (17,03%), 37 oriundos de 15 países americanos (27,4%) e quatro cardeais de quatro países da Oceania (2,97%).

O Brasil é o terceiro país com mais eleitores no processo. Com sete representantes, vem depois da Itália (17) e dos Estados Unidos (10). Na opinião do jornalista e escritor argentino Luis Rosales, biógrafo do papa e autor do livro Francisco: El Argentino Que Puede Cambiar El Mundo (“Francisco: o argentino que pode mudar o mundo”, em tradução livre), isso por dar ao grupo brasileiros “um peso relativo” na decisão.

Mas, se isso ocorrer, deve significar mais a escolha em conjunto por um nome estrangeiro do que a escolha de um brasileiro propriamente dito. “Vejo que há uma intenção de dar uma representação, mais do que à América Latina, à África e à Ásia”, diz ele, à BBC News Brasil.

Frei Betto tem opinião semelhante. “O Brasil não tem chance”, crava. “Também é um país ‘do fim do mundo’ [como Francisco costumava se referir sobre sua origem argentina] e dificilmente seria escolhido um segundo latino-americano [na sequência]”, diz

“Além disso, nenhum de nossos cardeais se destaca com potencial de dirigir a Igreja Católica, […] não distingo nenhum brasileiro papável”, prossegue.

Em geral, os especialistas entendem que o cardinalato brasileiro se manteve alinhado a Francisco. Para Pinto Ribeiro, o grupo deve “favorecer a ala progressista” no conclave, portanto.

Ela lembra que, embora nenhum nome do Brasil esteja despontando como favorito, “há algum apoio para dois” deles: ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e atual arcebispo de Salvador Sérgio da Rocha, primaz do Brasil; e o arcebispo de Manaus Leonardo Ulrich Steiner, o primeiro cardeal da Amazônia.

“O Brasil tem um grande peso moral em qualquer conclave”, diz o sociólogo Ribeiro Neto. “Tem a maior população católica do mundo. Isso sem dúvida confere um peso, uma certa respeitabilidade dentro do conclave.”

Ele concorda que os “cardeais brasileiros têm uma certa unidade interna” mas afirma que não se pode esperar “que eles votarão em bloco simplesmente por serem todos brasileiros”.

“Eles votarão em bloco se de fato houver um candidato que represente as aspirações deles. E que unifique as aspirações deles”, argumenta.

Fonte: BBC

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