Onde estão os milhões de dólares de corrupção na Venezuela apreendidos nos EUA

  • Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
  • BBC News Mundo

Andrade entregou cinco propriedades às autoridades. O desta imagem está avaliado em mais de US $ 8 milhões (R$ 42 mi)

Crédito, Departamento del Tesoro

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Andrade entregou cinco propriedades às autoridades. O desta imagem está avaliado em mais de US $ 8 milhões (R$ 42 mi)

Alejandro Andrade morava em uma mansão avaliada em mais de US$ 8 milhões (R$ 42 milhões), colecionava cavalos de corrida, relógios de marca e carros de luxo.

Em novembro de 2018, Andrade foi condenado nos Estados Unidos a 10 anos de prisão por lavagem de dinheiro. O caso se tornou o mais emblemático entre as inúmeras denúncias de desvio de fundos públicos que surgiram na Venezuela em anos.

Andrade era tenente aposentado, guarda-costas e secretário particular do ex-presidente Hugo Chávez, morto em 2013, que o nomeou Tesoureiro Nacional da Venezuela entre 2007 e 2010.

Naquele período, Andrade enriqueceu dando a certos privilegiados empresários acesso aos bilhões de dólares que administrava graças ao sistema de controle de câmbio implantado na Venezuela.

Durante o julgamento de Andrade, ele reconheceu ter recebido propina de US$ 1 bilhão (R$ 5,28 bilhões) e prometeu entregar uma quantia equivalente às autoridades americanas.

Foi assim que foram apreendidos cinco imóveis, dez veículos de luxo, 17 cavalos de corrida, 35 relógios de grife, além de dinheiro depositado em nove contas bancárias nos Estados Unidos e na Suíça.

Nunca antes tanto dinheiro de corrupção de um país estrangeiro foi recuperado em um julgamento criminal na Flórida.

“É o maior caso da história da Flórida sob a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior”, diz o advogado Michael Díaz, principal diretor do escritório de advocacia Diaz Reus & Targ, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Díaz representou duas pessoas implicadas no julgamento de Andrade.

Crédito, Sipa US / Alamy

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Alejandro Andrade foi Tesoureiro Nacional da Venezuela entre 2007 e 2010

Mas este não é o único processo de corrupção na Venezuela que está sendo investigado nos Estados Unidos. Em fevereiro de 2021 havia 38 casos envolvendo 164 pessoas e inúmeras empresas, segundo a ONG Transparency Venezuela, subsidiária da Transparency International.

No dia 21 de abril, um tribunal da Flórida condenou Edoardo Orsoni, ex-representante legal da estatal PDVSA, por ter aceitado suborno de empresários em troca da celebração de contratos com a petroleira venezuelana.

Orsoni prometeu devolver US$ 4,5 milhões (R$ 23 milhões), incluindo a entrega de dois imóveis em um condomínio de luxo no badalado bairro de Brickell, em Miami.

Há uma grande diferença entre os valores recuperados nos julgamentos de Andrade e Orsoni, mas em ambos os casos são valores importantes para uma Venezuela que está mergulhada em uma profunda crise econômica.

Mas o retorno desses fundos ao seu país de origem não será fácil.

De quanto dinheiro estamos falando?

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Nesta imagem, Alejandro Andrade pode ser visto logo atrás de Hugo Chávez durante a campanha presidencial de 1998

O destino desconhecido de US$ 300 bilhões

A Venezuela viveu uma bonança petrolífera durante a primeira década deste século que, com alguns altos e baixos, durou até 2014.

Desses fundos, segundo denúncias feitas em 2016 por Jorge Giordani, que foi ministro quase ininterruptamente por 14 anos (primeiro com Chávez e depois com Nicolás Maduro), perderam-se cerca de US$ 300 bilhões, cujo uso não parecia bem justificado nas contas públicas.

Considerado o “cérebro” econômico do chavismo como ministro do Planejamento, Giordani deixou o cargo em 2014, quando se distanciou de Maduro.

A Venezuela localizou ao redor do mundo 236 casos relacionados à corrupção na Venezuela, dos quais se conhece apenas o montante de dinheiro público comprometido em 114 casos: US$ 52 bilhões (R$ 274 bilhões).

Mas quanto desse dinheiro foi recuperado nos Estados Unidos? Não há uma resposta exata até agora.

“O Ministério Público sabe quanto apreendeu em cada caso. O governo tem esses números, mas não estão à disposição do público de forma sistemática e organizada, portanto, para conhecer essas informações é necessário coletar dados individuais em comunicados à imprensa e decisões judiciais”, diz à BBC Mundo Nate Sibley, pesquisador do thinktank Hudson Institute, baseado em Washington.

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos se recusou a participar deste relatório, e o Departamento do Tesouro não respondeu às perguntas da BBC Mundo sobre o assunto.

Números compilados pela Iniciativa de Recuperação de Bens da Venezuela (Inrav), ONG formada por cidadãos venezuelano-americanos, avaliam em cerca de US $ 1,5 bilhão (R$ 7,9 bilhões) o valor dos bens apreendidos até agora no contexto desses julgamentos de corrupção nos Estados Unidos .

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Hardrock Z, um dos cavalos mais valiosos de Andrade e com o qual seu filho Emanuel competiu durante as Olimpíadas Rio 2016

Embora não haja dados oficiais sobre quanto desse dinheiro está disponível imediatamente, várias fontes familiarizadas com o assunto concordaram ao dizer à BBC News Mundo que são cerca de US$ 500 milhões (R$ 2,6 bilhões).

O restante corresponde a bens apreendidos e que ainda não foram alienados ou estão relacionados com processos judiciais pendentes.

Embora o caso de Andrade seja o maior caso de recuperação de propriedade roubada por corrupção na Venezuela, não é o maior processo conhecido.

Em Andorra, vários ex-funcionários da PDVSA estão sendo julgados, acusados ​​de arrecadar US$ 2,3 bilhões (R$ 12 bilhões) em subornos.

A grande diferença é que nos Estados Unidos já existem vários julgamentos concluídos e muitas das pessoas investigadas no país têm colaborado ativamente com os tribunais, optando por se declarar culpado e facilitar as investigações.

Na prática, isso tem resultado em uma maior recuperação de ativos e, também, em sentenças atenuadas ou mesmo inexistentes.

O advogado Michael Díaz afirma que as duas pessoas que representou no caso Andrade (um parente e ex-companheiro do ex-tesoureiro chavista) nunca foram autuadas ou sofreram qualquer sanção como a revogação do visto para os Estados Unidos. Claro, eles colaboraram com as investigações e entregaram bens equivalentes a cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão).

No caso de Orsoni, outro cliente de Díaz, apesar de sua confissão de culpa, ele foi condenado a apenas três anos de liberdade condicional.

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Jorge Giordani, que foi ministro de Chávez e depois de Maduro, denunciou o prejuízo de cerca de US$ 300 bilhões

A sentença atenuada foi solicitada pelo próprio Ministério Público, que indicou em documento que o réu havia prestado “assistência substancial que favoreceu a investigação do governo e o julgamento de outras pessoas que cometeram crimes contra os Estados Unidos”.

De quem é esse dinheiro?

Mas o que acontece com esses recursos depois de confiscados no final dos julgamentos?

“Legalmente, a propriedade dos ativos confiscados é transferida para os Estados Unidos”, responde Sibley, do Hudson Institute.

Uma vez concluídos os processos criminais, esse dinheiro é depositado em um fundo do governo dos Estados Unidos, no qual se acumulam os recursos de todos esses julgamentos de corrupção de diferentes países do mundo.

Estes recursos podem ser utilizados para cobrir as despesas associadas à investigação e à apreensão e gestão dos bens recuperados, bem como para indenizar os organismos governamentais que participaram do caso. Também servem para responder às reclamações dos credores ou das vítimas.

“Normalmente não é um processo particularmente transparente, é algo que acontece nos bastidores entre agências governamentais”, diz Sibley.

Díaz explica que o Departamento de Justiça decide quais de suas agências compartilharão esses recursos.

Salienta que, no caso de Andrade, a instrução que seus clientes recebiam do Departamento de Justiça era de repassar metade dos recursos para o Departamento de Segurança Interna e a outra parte para o United States Marshals Service (o Serviço de Delegados de Polícia dos Estados Unidos, uma agência de aplicação da lei pertencente ao Departamento de Justiça).

“Tudo isso foi feito com a aprovação do Ministério da Fazenda e até do Executivo, o presidente dos Estados Unidos”, afirma.

Sibley diz que embora não haja muita transparência, no curto prazo o governo dos Estados Unidos pode utilizar efetivamente esses recursos para financiar outras operações anticorrupção, mas o objetivo final é devolvê-los aos seus países de origem.

“Eles não pegam o dinheiro e esquecem. Eles sabem que o dinheiro foi roubado”, diz ele.

Mas então, é possível para a Venezuela obter esse dinheiro de volta? É complicado…

Fundos para a Venezuela

“A devolução de bens recuperados da corrupção é feita constantemente quando é de Estado para Estado”, diz à BBC María Alejandra Márquez, presidente da Inrav (Iniciativa de Recuperação de Ativos da Venezuela).

Ele alerta, porém, que no caso da Venezuela a situação é mais difícil do que em outros lugares.

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Embora tenha obtido o reconhecimento de Donald Trump como presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó não tem acesso aos fundos recuperados nos julgamentos por corrupção

Ele explica que uma forma pela qual os países recuperam esse dinheiro é lutando caso a caso no tribunal, onde devem argumentar que o dinheiro deve retornar ao país que foi vitimado, mas que normalmente é um processo lento e complicado.

“É uma tarefa titânica. A verdade é que a Venezuela não tem situação nem capacidade institucional para fazer isso neste momento”, afirma.

Os países de onde os fundos foram roubados também podem ter acesso a esses recursos quando suas autoridades judiciais cooperam ativamente na investigação, de forma que, ao final do processo, possam compartilhar os recursos recuperados com o país de destino.

Uma fórmula final é baseada em acordos entre estados.

Márquez lembra que nas atuais circunstâncias, a aplicação desses mecanismos no caso da Venezuela não parece viável, já que o governo de Nicolás Maduro não é reconhecido por mais de 50 países (incluindo os Estados Unidos) e “não tem três poderes separados e funcionais”.

“O drama da Venezuela é que é um Estado ao mesmo tempo vítima e perpetrador, porque suas instituições são as que causam os danos que acabam afetando as pessoas e o próprio país”, explica.

Nate Sibley concorda. “Não há possibilidade de esse dinheiro ser entregue a Maduro. Obviamente, os Estados Unidos não vão devolver o dinheiro aos países onde será roubado novamente e é o caso da Venezuela neste momento”, afirma.

O governo Maduro, por sua vez, afirma que Washington quer sufocá-lo economicamente para forçar uma mudança de governo na Venezuela.

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Nicolás Maduro acusa os Estados Unidos de terem se apropriado ilegalmente de ativos venezuelanos.

O presidente e outros porta-vozes de seu gabinete acusaram os Estados Unidos de “se apropriarem ilegalmente” dos recursos congelados naquele país, incluindo contas bancárias e sua maior refinaria no exterior, a Citgo.

Quanto à possibilidade de o dinheiro recuperado nos julgamentos de corrupção ser entregue ao governo interino chefiado pela oposição Juan Guaidó, reconhecido por Washington, Sibley também vê limitações.

“O princípio norteador da política dos Estados Unidos é que o dinheiro seja devolvido de forma a beneficiar o povo venezuelano. No momento, Guaidó é considerado o presidente legítimo em Washington, mas não controla as alavancas de poder que permitiria que esse dinheiro fosse distribuído diretamente na Venezuela de uma forma que pudesse beneficiar a população, como, por exemplo, com a distribuição de ajuda humanitária”, garante.

Tentativas de Guaidó

Apesar disso, o governo Guaidó tem tentado de várias formas ter acesso a esses fundos.

Carlos Vecchio, que Washington considera embaixador do governo interino nos Estados Unidos, disse à BBC que desde 2019 tenta recuperar o uso desses recursos em favor da Venezuela.

“Quando chegou a minha vez de assumir essa responsabilidade, a primeira coisa que fizemos foi ativar todas essas linhas com o governo dos Estados Unidos. Falamos com eles sobre a necessidade de criar um fundo que se alimentasse dos ativos que recuperaram da corrupção”, diz Vecchio.

Segundo a imprensa norte-americana, as negociações com o governo do então presidente Donald Trump para o repasse desse dinheiro foram infrutíferas, obrigando representantes do governo Guaidó a recorrer à Justiça, onde não tiveram melhor sorte.

Em um julgamento de 2020, um tribunal da Flórida rejeitou as tentativas de advogados contratados pelo governo interino de obter a restituição de fundos para um caso de corrupção na PDVSA.

De acordo com o Ministério Público, a petroleira venezuelana não só não pode ser considerada vítima – por ser uma instituição totalmente controlada por um Estado soberano -, mas também foi “cúmplice” nos esquemas de suborno e lavagem de dinheiro que estavam sendo julgados.

Michael Nadler, que era promotor adjunto no distrito sul da Flórida e participou de vários desses processos, incluindo o de Andrade, explicou à BBC que a Venezuela também teve dificuldades em provar que havia sofrido perdas porque, em muitos casos, os contratos objeto de suborno tinham sido totalmente cumpridos.

Vecchio afirma que em 2019 sugeriram ao Ministério da Justiça que mudasse a definição de vítima que estava utilizando, argumentando que o povo venezuelano precisava ser indenizado.

Ao mesmo tempo, eles tentaram convencer a administração Trump a criar um fundo para distribuir os recursos recuperados nesses julgamentos de corrupção.

Ambos os esforços foram malsucedidos.

A janela da lei da verdade

Mas enquanto as negociações com o Executivo não terminavam de avançar, o Congresso trabalha na “Lei de Emergência, Assistência à Democracia e Desenvolvimento da Venezuela de 2019”, mais conhecida como Lei da Verdade, aprovado em dezembro de 2019 com apoio bipartidário. que contempla a possibilidade de criar um fundo para arrecadar os recursos recuperados da corrupção para devolvê-los a um futuro novo governo na Venezuela.

Mas essa regra deixou a criação do fundo nas mãos da Casa Branca, que não o fez.

Por isso, segundo Vecchio, ele estava trabalhando com vários senadores de ambos os partidos, entre eles Bob Menéndez, Marco Rubio, Tim Kaine e Ted Cruz, para criar por lei esse fundo com recursos recuperados da corrupção na Venezuela.

“Acho que há uma oportunidade de que esses recursos possam ser usados, sendo administrados pelo governo dos Estados Unidos sob coordenação mínima conosco (governo Guaidó). Seria controlado e supervisionado por eles e poderia ser usado para ajuda humanitária, para a compra de vacinas “, diz Vecchio.

A iniciativa avançou em 29 de abril, quando os senadores Marco Rubio e Ted Cruz apresentaram ao Congresso um projeto de lei de Preservação de Responsabilidade pelo Patrimônio Nacional que contempla a criação do fundo com o dinheiro recuperado nos julgamentos de corrupção relacionados à Venezuela.

Segundo a proposta legislativa, esses recursos seriam administrados pelo Departamento de Estado para “o desenvolvimento da democracia e da sociedade civil” na Venezuela.

María Alejandra Márquez, da Inrav, lembra que a posse do fundo permitiria proteger os recursos recuperados e agilizar o processo de devolução, pois toda vez que um julgamento for concluído, o juiz poderá ordenar que o dinheiro seja enviado diretamente ao fundo.

Considera que as regras de utilização do fundo devem contemplar como, quando e a quem esse dinheiro vai ser entregue.

“A situação na Venezuela é tão irregular que, se não forem tomadas decisões criativas para proteger esse dinheiro, sem dúvida não vai voltar para a Venezuela. Vai se perder no tempo na burocracia norte-americana esperando que a Venezuela um dia conserte sua situação e venha reivindicá-lo”, conclui.

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Fonte: BBC

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