

- Author, Daniel Pardo
- Role, Correspondente da BBC Mundo no México
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Nancy Nelson tem medo de dentista. Uma vez, ela ficou tão nervosa, que sua mandíbula chegou a se deslocar. Mas faz 25 anos – hoje ela tem mais de 60 -, que ela passou a ir ao dentista em Los Algodones, no México, e não teve mais esse problema.
“São muito gentis, carinhosos e atenciosos em relação ao meu medo”, disse, enquanto aguardava na fila de imigração para voltar aos Estados Unidos.
Los Algodones é uma pequena cidade mexicana de 10 mil habitantes na fronteira com os Estados Unidos, onde um a cada dez habitantes é dentista. A informação é confirmada pela prefeita, Herminia Marín, que também é dentista.
“A cidade é conhecida como capital mundial dos dentistas ou cidade do dente.”
Entre três e cinco mil norte-americanos visitam a cidade todos os dias para ir ao dentista, mas também para tomar margaritas, comer uns tacos e dançar algumas músicas.
Nancy vive em Cleveland, uma vila em Wisconsin que fica a cerca de 3.000 quilômetros de Los Algodones. Nos primeiros meses do ano, a temperatura lá chega a 0 graus celsius. Há relatos de tempestade de neve. Nessa mesma época, a temperatura em Los Algodones fica acima dos 15 graus, o que atrai muitos aposentados como Nancy e o marido, Bruce.
“Voamos do Arizona para cá, alugamos um carro, ficamos algumas noites, fomos ao dentista, economizamos milhares de dólares e ainda aproveitamos umas férias”, diz Bruce.
É comum, principalmente durante o inverno, ver norte-americanos se deslocando para o sul do país, parando seus carros em estacionamentos gigantes e cruzando a fronteira a pé para entrar em Los Algodones.
Eles são chamados em uma gíria local de “los ángeles de la nieve”, ou “las aves migratorias”, que na tradução livre para o português seria algo como “anjos da neve” ou “aves migratórios”.
São turistas que deixam o México com um sorriso brilhante, fascinados pela hospitalidade dos garçons e dos dentistas. Um fluxo migratório que revela como é – e como tem sido há décadas- a interação cultural entre mexicanos e estadunidenses, apesar de um muro de cerca de 10 metros de altura que pode ser visto de qualquer ponto da cidade.


De produtores de algodão a dentistas
Los Algodones, como o próprio nome sugere, foi um epicentro da indústria de algodão que se desenvolveu no norte do México durante o século XX, teve seu maior auge a Segunda Guerra Mundial, que impulsionou a demanda pela fibra, e entrou em declínio a partir dos anos 70.
Embora as plantações de algodão ainda sejam vistas na região, durante as últimas décadas a economia da fronteira se voltou a serviços que pudessem atender as demandas do norte.
“Todas as cidades do norte do México, sem exceção, recebem um volume enorme de demanda de serviços médicos nos Estados Unidos, às vezes promovido pela indústria farmacêutica”, disse José Zavala, um engenheiro e especialista em desenvolvimento no Colégio de la Frontera, em Tijuana, no México.
“Acontece que em Los Algodones isso é mais perceptível por ser uma cidade pequena e porque, nessa região, ao norte da fronteira, há uma grande concentração de aposentados”, explica.

A interação entre o norte do México e o sul dos Estados Unidos é histórica, profundamente enraizada, quase estrutural. Milhões de famílias cresceram de ambos os lados. Até os anos 70, os nortistas podiam cruzar a fronteira sem passaporte. O que se vêm em Los Algodones é um exemplo de uma relação comercial e cultural de longa data.
Uma relação que é colocada à prova com Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, sua abordagem dura em relação aos imigrantes e as tarifas às importações mexicanas. Mas, que pela raiz histórica, é algo difícil de se romper.
“As tarifas são um obstáculo, mas a relação econômica é muito difícil de ser rompida”, garante Zavala.
Carlos Rubio foi um dos primeiros dentistas de Los Algodones nos anos 80. Nascido em Sinaloa, no oeste do México, se mudou para a fronteira ainda jovem para tentar a sorte e se deparou com uma demanda por serviços odontológicos, o que fez com que ele se especializasse e montasse um consultório, que hoje é uma sofisticada clínica dentista.
Durante um passeio, perguntei a ele que tipo de sorriso é favorito entre os clientes e então uma de suas assessoras, de origem venezuelana, interrompeu rindo. “Os gringos são obcecados com sorriso branco descolorido, como se tivesse usado água sanitária”.
Rubio, que mora em Yuma, no Arizona, e cruza a fronteira todos os dias a trabalho, acredita que “o sistema de saúde dos Estados Unidos não é social”.
“Dos 300 milhões de habitantes, uns 60% não tem seguro odontológico ou tem uma cobertura parcial. Isso representa entre 80 milhões e 160 milhões de pessoas com cobertura precária. Ou seja, há entre 80 e 160 milhões de oportunidade para nós.”
Segundo a Associação Odontológica Americana, um terço dos adultos, entre 19 e 64 anos, não tem seguro dental, apesar de ter seguro médico. A grande maioria dos seguros odontológicos não cobre nada além de uma limpeza ou check-up.
Com isso, a maioria dos estadunidenses não tem outra opção a não ser gastar dezenas de milhões de dólares. Ou ir a Los Algodones.


O problema do seguro odontológico nos EUA
Roger Graves é um veterano de guerra que mora na Flórida. Ele veio com a esposa e a filha pela quarta vez a Los Algodones para fazer tratamento nos dentes. Dessa vez, eles ficaram hospedados por algumas noites na cidade, e fazem fila para cruzar a fronteira com malas, entre vendedores ambulantes de artesanatos e alimentos mexicanos.
“Eu tenho seguro médico por ser veterano, mas não inclui tratamento odontológico, e como a minha renda é de aposentado, assim como a da minha esposa, essa opção é muito boa para nós”, diz.
Segundo as contas de Graves, ele economizou entre 67% e 75% indo para Los Algodones para fazer o tratamento dentário.
“O sistema médico estadunidense precisa ser consertado, é muito caro”, afirma, uma queixa que foi repetida por todos os entrevistados.
“É um sistema inchado, só um pouquinho”, disse de forma irônica June Spinler, que é do estado de Iowa, no centro-oeste dos Estados Unidos, mas passa os invernos no sul do país.
Juan Ramón Soto, um camponês de origem mexicana, que tem cidadania americana, acrescenta: “Posso arrancar todos os dentes aqui e colocar de novo que, ainda assim, vai sair mais barato do que arrancar um dente nos Estados Unidos.”


A falta de regulação dos preços, a fragmentação do sistema, o poder das farmacêuticas e os custos administrativos, entre outros motivos, fazem o sistema de saúde estadunidense ser o mais caro do mundo.
O México também tem problemas sérios, mas a região norte do país desenvolveu uma infraestrutura moderna com especialistas que souberam aproveitar a demanda norte-americana.
E tudo isso é feito com a hospitalidade típica dos mexicanos: eles te buscam na fronteira com carrinhos de golfe, levam até o consultório, e depois te deixam em uma das praças de alimentação ao ar livre onde você pode comer umas enchiladas, tomar uma margarita e escutar música ao vivo.
June Spinler resume a experiência: “Você encontra tudo em um só lugar”.
Isso torna mais fácil perder o medo de dentista.
Fonte: BBC