Viajar para tomar vacina é de bom tom?

Agora que o chamado turismo de vacina deixou de ser uma prática informal, ganhando status oficial de estratégia para recuperar a combalida indústria do turismo na nação mais poderosa do planeta, você talvez já esteja se perguntando: devo viajar para tomar a vacina da Covid-19 nos Estados Unidos?

Parafraseando a personagem Keila Mellman, a consultora de etiqueta virtual criada pela atriz Ilana Kaplan e que viralizou nas redes, a resposta bem poderia ser: “Quer viajar? Viaja. Mas não é de bom tom”.

Afinal, uma tragédia como uma pandemia que já matou 3,4 milhões de pessoas em um planeta globalizado requer uma solução que privilegie a saúde coletiva. O turismo de vacina só resolve o seu problema e o de uma pequena elite privilegiada.

Bastou alguns dos estados norte-americanos favoritos dos viajantes brasileiros, como Flórida e Nova York, anunciarem a liberação de vacinas para estrangeiros em pontos turísticos como Miami Beach e a Times Square, para os agentes de viagem do Brasil começarem, enfim, a tirar a poeira da mesa de seus home offices para prepararem novas reservas.

Mas não é qualquer um que vai conseguir embarcar e deixar para trás a desoladora falta de perspectiva da imunização em larga escala no Brasil.

É preciso, primeiro, ter um visto válido, uma vez que os consulados seguem fechados para novos agendamentos aos turistas. Além disso, prepare o bolso: com o dólar acima de R$ 5,20, os pacotes para vacinação têm girado em torno de R$ 50 mil para quem viaja por cinco semanas.

O tamanho do investimento varia em função da duração da viagem. Brasileiros devem passar 14 dias em quarentena obrigatória em um país com acesso liberado aos Estados Unidos, como o México. Depois, gasta-se os tubos em mais 21 dias nos States, tempo mínimo necessário entre a primeira e a segunda dose da vacina da Pfizer, a mais comum por lá. Gasta menos o sortudo que obtiver a disputada dose única da Jansen.

Se você, porém, tem tempo e dinheiro, que mal há em aproveitar essa oportunidade?

De fato, não há ilegalidade alguma em dar essa escapada. Brasileiros notórios como a cantora Anitta, o apresentador Roberto Justus e o ex-juiz Sergio Moro até otimizaram a viagem juntando a vacinação na terra de Joe Biden com compromissos profissionais. Mas a questão suscita debate.

A Organização Mundial da Saúde se posiciona contra o turismo de vacina porque tenta buscar, junto a grandes líderes mundiais, uma solução orquestrada para este caos sanitário.

O ideal é que países ricos com vacinas de sobra, como os Estados Unidos, repassem suas doses extras para nações pobres vacinarem ao menos as populações prioritárias, como profissionais de saúde.

Para as classes A e B latino-americanas, parece imperdível a chance de ficar com a xepa das vacinas desprezadas por quase um quarto da população dos EUA ­(que não se atrai nem por promoções de hambúrguer grátis para cada dose). Os pobres sem vacina de seus países de origem que lutem para um dia merecerem privilégios assim. É como se, em tempos de barbárie social, fosse aceitável viver o “cada um por si”, o “salve-se quem puder”.

Acontece que, mesmo imunizada, a patroa que tomar vacina lá fora continua, ainda que em menor escala, correndo o risco de contagiar a empregada na volta. O estrago da circulação mundial por países com estágios de vacinação distintos pode ser pior se os turistas forem de nações atrasadas como Índia e Brasil, ameaçadas por terceiras ondas de variantes ainda mais mortais.

Indústria estratégica para reaquecer a economia mundial, o turismo internacional virou uma arena para discussões éticas importantes sobre que rumos a humanidade quer tomar na era pós-pandemia —e a prioridade da saúde pública no planeta. Não custa lembrar que uma população doente não consome.

Voltamos a uma questão semelhante àquelas de usar ou não máscara, de ser “idiota” e ficar em casa ou embarcar para ser vacinado na terra do Mickey. Nossa atitude diante desse dilema moral mostra o quanto priorizamos salvar a nossa pele ou dormir com a consciência tranquila de que não estamos contribuindo para que o individualismo se sobreponha à coletividade.

Fonte: Folha de S.Paulo