Um fim para o sofrimento

Ao você ler esta coluna eu certamente já estarei vacinado contra a Covid-19. Mas, antes de entrar mais neste assunto, tenho que pedir licença ao escritor indiano Pankaj Mishra por pegar emprestado o título de um de seus livros para a coluna de hoje.

O título original é mais completo: “Um Fim para o Sofrimento: O Buda no Mundo”. Nesse trabalho (2011, editora Record), ele conta seu caminho da descoberta de Buda. Não se trata, no entanto, de um livro místico. Pelo contrário, o autor dá voltas pela literatura e pela filosofia, além de inserir ótimas passagens autobiográficas para nos envolver na sua busca espiritual.

Escrevendo no final dos anos 2000, Pankaj certamente não podia prever o mundo que o leria em 2021, avassalado por ondas de ignorância, contra as quais lutamos diariamente para manter um mínimo de lucidez.

Contudo, ao reler o livro recentemente não pude deixar de perceber o quanto ele é adequado a esse momento caótico que vivemos apenas aqui no Brasil. Não, este não é um texto sobre política. Este espaço fala de viagens e, se você embarcou comigo lá no primeiro parágrafo, tem minha palavra de que não vou decepcioná-lo nesse sentido. Seguimos.

A estupidez que enfrentamos quase que diariamente em falas oficiais, depoimentos de CPIs, tuítes delirantes (olha o comunismo!) e discussões informais entreouvidas nas ruas é primeiro assustadora, mas cumulativamente tem um efeito ainda pior: o de nos trazer desesperança.

Dez anos atrás, “Um Fim para o Sofrimento” tinha me trazido alguma paz. Se esse foi o feito quando ainda não podíamos nem imaginar ser dominados por tanta desinformação, será que hoje eu encontraria respostas semelhantes?

Pode apostar! Veja por exemplo o que escreve o autor sobre os “sramanas”, uma seita religiosa da Índia anterior a Buda: “Embora eles dialogassem muito e para grandes plateias, a base do que diziam eram afirmações. Realidade era isto ou aquilo, sem nenhuma base moral. Eles viviam no que Buda (…) chamou de ‘selva de opiniões’”.

Senti um leve arrepio e fiz uma pausa. Quando retomei a leitura, outra iluminação: “Grande parte do sofrimento tem origem humana e pode ser evitado”. Hum…

E, em outra passagem, sobre o sul da Ásia no tempo de Buda, a “punhalada” final: “Havia mais comércio e viagens do que antes. Para as pessoas na cidade, a experiência de viver num lugar pequeno onde todos se conheciam, governados por uma democracia consensual, tinha se perdido”.

Logo relacionei isso à realidade que nós temos hoje. Comandados por cabeças que não suportam a ideia de viagens ilimitadas e os intercâmbios e as descobertas que elas nos trazem, estamos cada vez mais isolados e vulneráveis ao obscurantismo. E a rotinas surreais.

Eu mesmo tive de viajar para outro estado, onde também sou residente, para receber a primeira dose, enquanto vacinas são oferecidas livremente na Times Square nova-iorquina. Aqui, temos que driblar
incompetências logísticas e uma surreal máfia de atestados falsos para sonharmos com uma imunidade.

Enquanto o mundo quer voltar a viajar, temos que nos adaptar a fronteiras que não nos querem por perto. E, que fique claro: “vontade de viajar” é bem mais do que ir ao outlet em Orlando (o que também é válido). É saciar a nossa fome de horizontes, de procurar trabalho, educação ou mesmo inspiração em culturas além da que nos fecha no nosso quintal. Sentimos faltas dessas possibilidades não porque são artigos de luxo, mas vivências legítimas e que nos tornam mais humanos. E nos ajudam a sofrer menos.

Eu mesmo já fui buscar o Buda em vários cantos desta Terra: em Luang Prabang, no Laos; Bagan, em Mianmar; em Foz do Iguaçu, no Paraná; no museu Rubin, em Nova York; em Rishkesh, na Índia. E é para cada um desses lugares que eu volto quando estou me sinto desenganado.

De agora em diante, com uma cópia do livro de Pankaj Mishra na mala de mão. E vacina tomada!

Fonte: Folha de S.Paulo