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Quando os hotéis vão entender que precisam de capacitação para atender pessoas negras?

“Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. A frase da filósofa norte-americana Angela Davis dá o tom da importância de ter ações pró-diversidade em todos os setores. Mas no turismo, a rede hoteleira parece tapar os olhos para o chamado racismo estrutural e pouco faz para capacitar e tornar suas equipes e funcionamento mais diversos. E, nesse caso, há algo ainda mais grave, pois nem dá para dizer que os hotéis brasileiros não são racistas, pois os casos de discriminação racial são frequentes.

O combate ao racismo no Brasil está intimamente ligado ao setor. A Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira que proíbe a discriminação racial no Brasil, foi proposta após um incidente com a bailarina norte-americana Katherine Dunham, que foi impedida de se hospedar num hotel luxuoso de São Paulo por ser negra. De lá pra cá, as leis de combate ao racismo avançaram, assim como os casos de discriminação dentro desses espaços que deveriam acolher, mas acabam reproduzindo o racismo que está em toda a sociedade.

É interessante porque há hotéis com bandeiras do arco-íris, indicando serem LGBTfriendly; com a sinalização para cadeirantes, mostrando que são acessíveis; e até com plaquinhas que indicam que são pet friendly; mas não vejo a mesma intenção em ser black fliendly, reconhecendo que passaram por capacitações e que saberão não apenas tratar clientes negros e negras, como agir em casos de racismo no seu interior.

Um argumento frequente dos hotéis para não contratarem consultorias específicas em questão racial é dizerem que tratam todas as pessoas iguais. Ao tomarem essa posição estão mostrando que não querem entender o racismo estrutural e o reproduzem, invisibilizando toda a desigualdade de padrões e tratamento que as pessoas negras estão submetidas. Para mudar esse cenário, as consultorias em diversidade tem sido um caminho necessário. A Diaspora.Black, por exemplo, criou um selo em que certifica espaços que estão preparados para receber uma população diversa. Cerca de 300 estabelecimentos já participaram do treinamento que dura até 16h. “O racismo é estrutural e a desconstrução passa por capacitação e mudança de posturas”, diz Carlos Humberto Silva, fundador da Diaspora.Black.

O treinamento ofertado passa por gestores e colaboradores e o selo certifica o compromisso daquele hotel com novas abordagens. “Não é um selo ‘eu não sou racista’, é um compromisso”, diz, lembrando que a consultoria existe desde 2018 e que o movimento de busca diminuiu na pandemia quando o setor foi diretamente afetado. “Ainda há interesse reduzido, quando pensamos que o turismo é gerido por homens brancos, mais velhos, elitistas e que ainda não se preocupam com o combate ao racismo”, considera.

A diversidade é ainda um diferencial no mercado e os estabelecimentos que se preparam para receber o público negro têm uma possibilidade maior de atuar nesse mercado. “Quem deixa de olhar para esse grupo, tem um crescimento limitado dentro do mercado de turismo, pois perde 56% da população brasileira”.

O coletivo de afroturismo, que reúne empresas como Guia Negro, Brafrika, Sou Mais Carioca, TN – Estratégias Operacionais de Turismo e Bitonga Travel, também vem atuando com consultorias e debates sobre diversidade no setor. Um dos membros é Hubber Clemente, hoteleiro, membro do coletivo de afroturismo e fundador do Afroturismo Hub. Ele ressalta que atua há 23 anos na área e que até hoje percebe que as pessoas negras não conseguem entrar num hotel seguros de que não vão sofrer racismo. “Mesmo assim, ainda vemos negação e omissão do setor em relação ao racismo estrutural e seus efeitos. Não há medidas preventivas e as ações são superficiais”, considera, lembrando que as grandes redes parecem acreditar que o racismo estrutural vai ser resolvido organicamente.

Outro ponto destacado é a falta de representatividade nos hotéis e a necessidade de treinamentos específicos para a hotelaria. “Um dos princípios da hotelaria é o bem receber e ser o segundo lar da pessoa. Como uma pessoa negra pode se sentir bem se aquele lugar não oferece nenhum tipo de segurança que não vai ter racismo”, questiona, emendando com uma pergunta que deixo para os hotéis refletirem e agirem: “Vão esperar acontecer mais algum caso para tomar atitude?”.

Fonte: Folha de S.Paulo

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