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No Brasil onde faltam padres, quem são os jovens que atendem o ‘chamado’ ao sacerdócio: ‘Celibato acontece com naturalidade’

Junior Henrique da Silva e Kaik Ribas, ambos de camisa branca de mangas curtas, com um mural religioso ao fundo e olhando ao longe

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, Junior Henrique da Silva (dir.) e Kaik Ribas se prepararam para ser padres

  • Author, Fábio Corrêa
  • Role, De Belo Horizonte (MG) para a BBC News Brasil

Em 2022, porém, o mineiro de Raposos (MG) largou o emprego e terminou um noivado. Depois de duas desistências, ele enfim compreendeu o “chamado”.

Kaik Ribas, de 28 anos, estudava jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), mas sentia que algo não caminhava como planejado.

No fim da graduação, resolveu tentar o caminho que o atraía desde a infância. Após três anos de encontros vocacionais — uma espécie de “classificatória” para os candidatos ao seminário, normalmente com duração de um ano —, ele foi aceito para a formação eclesiástica.

Hoje, ambos são colegas no Seminário Coração Eucarístico de Jesus, da Arquidiocese de Belo Horizonte, atualmente com 60 estudantes, residentes no edifício inaugurado em 1923, na região noroeste da capital mineira.

O período que antecede a batina dura um total de oito anos, incluindo a fase introdutória, chamada de propedêutico, e graduações em filosofia e teologia. Além disso, é composto por uma rígida rotina e pelas renúncias, entre as quais a mais famosa é o celibato.

Os dados mais recentes sobre os seminaristas, publicados em 2021 pela Regional Oeste 1 da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), indicavam um universo de 8 mil candidatos a padres no Brasil.

Destes, 5,3 mil eram diocesanos (formados nas dioceses, as administrações regionais da Igreja, como as arquidioceses, responsáveis por paróquias locais — atualmente, são 278 as dioceses espalhadas pelo Brasil) e 2,7 mil, religiosos (ligados a congregações como franciscanos e jesuítas).

A CNBB afirma que os números estão defasados, mas não informou qual a contagem atual.

Ao menos no âmbito global, a Igreja Católica tem registrado uma queda constante nessa estatística.

Junior Henrique da Silva e Kaik Ribas nas dependências do seminário da Arquidiocese de Belo Horizonte

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, Os dois seminaristas são colegas na mesma instituição em Belo Horizonte

De acordo com o Anuário Pontifício 2025, publicado em março e que atualiza os dados gerais do mundo católico, o total de seminaristas no mundo passou de 108,4 mil para 106,4 mil de 2022 para 2023, último ano registrado no documento.

Mas a tendência já vem de mais tempo — segundo o anuário, há uma “diminuição ininterrupta desde 2012”. Para se ter uma ideia, em 2019, eram 114 mil.

Segundo a publicação, o Brasil continuaria sendo o maior país católico do mundo, responsável por cerca de 13% dos fiéis do planeta, um contingente aproximado de 182 milhões de pessoas.

Outros levantamentos, porém, colocam em xeque esse número. De acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada em 2020, 50% dos brasileiros se declaravam católicos (cerca de 106 milhões na contagem populacional do Censo 2022) e 31% se diziam evangélicos.

Já uma projeção da consultoria Mar Asset Management, feita a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Receita Federal e publicada em fevereiro deste ano, aponta que, em outubro de 2026, 36% dos brasileiros serão evangélicos.

Esse quadro, porém, não indica uma crise na formação católica, ressalta o padre Evandro Campos, reitor do seminário da Arquidiocese de Belo Horizonte.

A entidade responde atualmente por cerca de 650 padres, em 300 paróquias distribuídas por 28 municípios da região metropolitana.

Os dados mais recentes da CNBB, de 2023, apontam para um total de 22,1 mil padres no Brasil.

É um número que também está em queda, de acordo com um estudo divulgado em 2018 pelo Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (Ceris), fundação hoje extinta que era vinculada à CNBB.

Havia então 27,3 mil padres no país — o que correspondia à época a um padre para 7,8 mil habitantes. Na Itália, em comparação, havia um para cada mil.

“A Igreja vem conseguindo responder acolhendo novos jovens”, diz Campos.

Segundo ele, há um trabalho feito diretamente com os párocos, no sentido de identificar possíveis candidatos ao sacerdócio.

“A partir daí, vamos fazendo um acompanhamento individual e de grupo, durante um ano — e, nesse processo, temos tido uma presença grande de jovens”, afirma Campos.

Em alguns locais, onde a situação é crítica, como a região da Amazônia, a Igreja tem trazido sacerdotes até mesmo da Índia para tentar acabar com os “desertos de padres” na floresta.

O ‘chamado’

A decisão pelo sacerdócio é conhecida como “chamado”. Ocorre em diversas fases, durante as quais o candidato vai reforçando a certeza pelo caminho escolhido.

Normalmente, começa com um envolvimento na paróquia, durante a infância, como coroinha, e mais tarde, participando de pastorais, retiros espirituais e atividades no dia a dia da igreja, junto ao padre local.

E é o padre quem pode indicar os jovens aos responsáveis pelo seminário para o processo de encontros vocacionais. Já a partir dessa fase, o futuro seminarista é acompanhado de perto pela equipe da instituição escolhida, incluindo psicólogos.

“Essa decisão é muito exigente, o jovem não pode ficar sozinho nela. Por isso, há toda uma rede de apoio para ajudá-lo a tomar coragem para decidir, para que ele possa dar o ‘sim’ ao ‘chamado'”, explica o padre Evandro Campos.

Ele acrescenta que os acompanhamentos espirituais e psicológicos continuam não só durante o seminário, mas também no exercício da batina, nas paróquias, depois da formação.

Junior Henrique começou a se envolver na vida paroquial aos 4 anos de idade, como coroinha.

“Quando eu era pequeno e as pessoas me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu respondia que queria ser padre e professor. Eram meus dois grandes desejos”, conta ele.

“Por incrível que pareça, fui professor. Agora, estou caminhando para ser padre.”

Junior Henrique da Silva com uma igreja ao fundo

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, ‘Quando eu era pequeno e as pessoas me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu respondia que queria ser padre e professor’, diz Junior Henrique

Aos 17 anos, Junior procurou o seminário de Belo Horizonte. Porém, durante os encontros paroquiais, percebeu que não era o momento certo.

Voltou mais tarde, em 2018, já como professor, mas desistiu novamente, o que gerou uma enorme inquietação. Foi aí que veio o “chamado”.

“Eu me sentia realizado no que fazia, mas faltava algo. Existia um vazio. O encantamento pela igreja era maior”, descreve.

O início da vida como seminarista acontece só quatro anos depois. No entanto, para ele, tudo ainda é parte de um amadurecimento.

“Tenho plena consciência de que eu estou aqui, não com a certeza de ser padre, mas de passar por esse processo.”

Kaik, por sua vez, vem de uma família que já conta com três padres formados. O despertar para o catolicismo veio também enquanto criança, quando, nos fins de semana, ia para a casa da avó, em Contagem (MG).

“Eu a acompanhava saindo para rezar nas casas das pessoas, e isso me instigava. Com meus primos, eu brincava de celebrar a missa. Fui criando esse gosto”, lembra ele.

Na adolescência, porém, acabou se distanciando das missas e, levado por conhecidos, chegou a frequentar os cultos evangélicos da Igreja Maranata, mas não se adaptou e voltou ao catolicismo, dessa vez com mais afinco.

Alguns anos depois, na faculdade de jornalismo, Kaik se sentia estranho fora da igreja. Começou com os encontros vocacionais.

“Geralmente dura um ano, após isso, ou a gente entra, ou não entra [no seminário]. Fiquei três anos”, resume.

“O padre formador me disse que fui muito corajoso porque não desisti. Mas era algo que eu queria tanto para minha vida.”

A convivência com outras religiões também faz parte da trajetória de Junior Henrique, que tem familiares evangélicos e espíritas, e do próprio padre Evandro — sua mãe é adepta da Igreja Prebisteriana desde que ele tinha 6 anos.

Kaik Ribas sentado num sofá preto, com uma pintura colorida ao fundo

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, Na faculdade de jornalismo, Kaik se sentia estranho fora da igreja

‘Não estamos deslocados da sociedade’

Um dia normal no Seminário Arquidiocesano Coração Eucarístico de Jesus, em Belo Horizonte, começa de madrugada, por volta das 5h15, quando os estudantes despertam para a primeira oração, às 6h.

Na sequência, todos se reúnem para o café da manhã. Depois, seguem para a PUC Minas, universidade administrada por uma organização católica, onde cursam teologia e filosofia.

Às 12h40, se juntam novamente para o almoço, que termina pontualmente às 13h10, com uma oração conjunta.

Os seminaristas são liberados para atividades individuais até às 15h30, horário do café da tarde, que termina às 16h.

Às 18h, participam da Santa Missa, com exceção das sextas-feiras, quando há folga na parte da tarde.

Nos fins de semana, é vez do estágio, quando os candidatos ao sacerdócio atuam auxiliando os párocos distribuídos por toda a Arquidiocese de Belo Horizonte.

Apesar de rígida, a rotina lá dentro tem seus respiros. “Não estamos deslocados da sociedade. Temos academia aqui dentro, área de acupuntura, pilates, mesa de pingue-pongue, até cadeira de massagem. E os psicólogos, que também estão à nossa disposição”, diz Kaik.

 Kaik Ribas lendro um livro sentado de lado numa cadeira

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, Os seminaristas são incentivados à prática esportiva e cultural, como a leitura, dentro e fora do seminário

Não há impedimentos ao contato com a família, que pode visitá-los no seminário.

Também há encontros regulares entre os seminaristas para socialização, em que participam também os membros das casas paroquiais de Belo Horizonte, que recebem seminaristas de outros locais, como do interior do Estado ou de outras regiões no país, para complementarem a formação com aulas de teologia, por exemplo.

Além disso, os seminaristas são incentivados à prática esportiva e cultural, dentro e fora do seminário.

Nos murais de recado, sugestões de filmes em cartaz, exposições interessantes na cidade, entre outras coisas, funcionam como uma agenda para que eles tenham uma vida fora do seminário.

O celibato é outro aspecto que acompanha os pretendentes à batina desde a entrada no seminário.

“As pessoas acham que isso é um empecilho, a nossa maior dificuldade. Só que vai acontecendo com naturalidade”, afirma Junior Henrique.

“Pode ser que talvez um ou outro [seminarista], quando entre, tenha mais dificuldades. Mas o próprio seminário vai nos ajudando a enfrentar isso.”

Segundo ele, a questão do celibato é trabalhada desde o início, nos encontros com psicólogas e na orientação espiritual.

“Estamos aqui por liberdade, ninguém nos obrigou”, complementa Kaik.

“As pessoas tendem a achar que os problemas da igreja, por exemplo, o suicídio de padres ou a pedofilia, vão ser resolvidos com a liberação do matrimônio dos padres. Se fosse assim, todos os padres estariam na praça do Vaticano com faixas levantadas dizendo ‘Queremos casar’. Não é essa a solução.”

Em março de 2023, o papa Francisco revelou a possibilidade de rever o celibato sacerdotal na Igreja Católica, afirmando não haver contradição se um padre quiser se casar.

A declaração, no entanto, não teve outros desdobramentos oficiais. Apesar de não ser um dogma, a regra vigora desde o século 11.

O novo perfil dos seminaristas

Até a primeira metade do século passado, era comum que famílias enviassem os filhos, ainda crianças, para os seminários católicos.

Era uma forma de garantir a educação de qualidade, à época restrita aos grandes centros urbanos, e também a segurança financeira, com uma carreira sólida no sacerdócio.

De acordo com o historiador Edson Claiton Guedes, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o Concílio Vaticano 2º, finalizado em 1965, que mudou essa tendência, com a recomendação para que a Igreja admitisse seminaristas diocesanos já na maioridade.

“As pessoas hoje que se sentem chamadas a ser padres vêm muito mais das grandes cidades, não é mais aquela figura do menino, que estava no interior e entrava para a religião para ser aceito na sociedade”, diz Guedes, que foi seminarista e padre por 20 anos, da ordem dos capuchinhos.

“Agora, é alguém que já vive nesse ambiente religioso e de família, católica.”

Segundo ele, essa tendência é um reflexo da própria mudança no quadro do país, com a população passando de maioria rural para urbana e um maior acesso à educação de qualidade.

No entanto, o historiador vê, sim, uma dificuldade com a formação de novos padres.

“O número de padres não dá conta da quantidade de católicos. A igreja está muito apegada a valores tradicionalistas do passado, que ela mesmo forjou”, diz Guedes.

“Não aceitar homens casados, por exemplo, está só na Igreja Católica de rito latino — nas ortodoxas e de rito oriental, isso é liberado. Tem também questão das mulheres, há uma resistência muito grande para liberar freiras de se rezar a missa. Isso poderia resolver parte do problema.”

Padre Evandro Campos, reitor do seminário de Belo Horizonte, sentado numa cadeira de escritório com livros ao fundo

Crédito, Alexandre Rezende

Legenda da foto, Para o padre Evandro Campos, popularidade do atual papa reflete a força da igreja

O teólogo João Virgílio Tagliavini, doutor em Educação e professor emérito da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), acredita que o perfil dos novos seminaristas tem se destacado por ser mais conservador.

“Eles tendem a valorizar a liturgia tradicional, em alguns casos, até com a missa tridentina, em latim”, afirma o autor de Você tem que ser padre: entre o chamado divino e a imposição sociocultural da vocação sacerdotal, cuja base são pesquisas junto a seminários no Brasil.

Tagliavini também foi seminarista — entrou aos 12 anos no internato e se formou padre, mas largou a batina, segundo ele, por causa de uma “guinada à direita” da Igreja Católica a partir do Concílio 2º, o que afastou os valores da Teologia da Libertação, corrente surgida nos anos 1960 na América Latina que defendia causas sociais e se posicionava contra a violência de Estado das ditaduras de direita da região, com a qual ele se identificava.

“Com esse movimento, as estruturas mais progressistas da igreja foram fechadas e abriu-se o espaço para grupos ultraconservadores, a Opus Dei, ou figuras como o frei Gilson“, comenta Tagliavini.

Citado por Tagliavini, frei Gilson representa a ala criticada pelo teólogo. O sacerdote tem cerca de 7 milhões de seguidores no YouTube e vem atraindo apoio da direita e críticas da esquerda por seu posicionamento.

Nas missas, não é raro ouvi-lo pregando contra o empoderamento feminino, a homossexualidade, o aborto e o comunismo.

Frei Gilson segurando uma bíblia aberta e um microfone

Crédito, Reprodução/Redes Sociais/@freigilson_somdomonte

Legenda da foto, Frei Gilson tem cerca de 7 milhões de seguidores no YouTube e vem atraindo apoio da direita

Já Guedes enxerga a figura dos padres influencers mais como um efeito natural, resultado de uma necessidade dos meios de comunicação de tratarem dos assuntos religiosos.

“Então, a [mídia] precisa ter alguém para fazer a ponte desse mundo, busca quem tenha essa vocação, e temos vários padres nesse quesito”, analisa o historiador.

“Tem um lado do frei Gilson, que é a figura de uma igreja conservadora, tradicional; tem o do padre Júlio Lancelotti, mais voltado à questão social; tem o padre Fábio de Melo, o cara jovem e descolado.”

Guedes e Tagliavini concordam que a figura do papa Francisco, visto como um progressista no contexto da Igreja Católica, não foi capaz de mudar as diretrizes do Vaticano. No entanto, eles avaliam que o carisma de Francisco ajudou a mobilizar fiéis.

Para o padre Evandro Campos, a popularidade de Francisco reflete também a força da Igreja. Ele lembra um levantamento recente, que mostra que, entre os eventos realizados na praia de Copacabana, a Jornada Mundial da Juventude, com a presença de Francisco, em 2013, foi a que teve maior público – 3,6 milhões, mais que o dobro que assistiu ao show de Madonna em em 2024 (1,6 milhão). “Um fenômeno”, diz Campos.

Para o seminarista Junior Henrique, Francisco fez um pontificado de “renovação evangélica e coragem pastoral”.

“Vimos Francisco batendo na tecla do problema dos imigrantes, não só porque a Igreja quer intervir no lado político, mas porque a Igreja somos nós”, diz Junior.

“As pessoas criticam, mas nós, seres humanos, somos seres de política. Como vamos cuidar de nós se não conseguimos falar um assunto comum da coletividade? Os maiores problemas da igreja são hoje os problemas humanitários”, continua.

“Embora sua morte cause dor à toda a Igreja, isso não extingue a luz do seu testemunho, que permanecerá como farol para a humanidade.”

O seminarista Kaik Ribas diz que Francisco “trouxe a Igreja ao século 21 ao quebrar muitos paradigmas” e espera que o próximo papa dê continuidade e aprofunde o seu trabalho.

No ano em que a Igreja celebra um jubileu, que seja “um papa da esperança”, diz Kaik.

“[A escolha] Está a cargo do Espírito Santo, foi ele que sempre guiou a Igreja e continuará guiando.”

Fonte: BBC

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